PENSAMENTOS SOBRE: Microhabitat (2017), de Jeon Go-Woon

Até onde minha memória alcança, a primeira vez que pensei na comida como afeto foi quando assisti Comer, Beber, Viver (1994), de Ang Lee. A abertura do filme é impactante. Nela, o renomado chef de cozinha, Chu, executa meticulosamente cada etapa do preparo de iguarias da culinária taiwanesa. O processo ritualístico, o cuidado, o valor atribuído ao tempo. Tudo tão palpável e vivo. Um tipo de relação que já não me parece disponível hoje. 

Depois de Parasita (2019), ficou difícil assistir a um filme como Microhabitat (2017), estreia da Jeon Go-Woon, e não olhar para a Coreia do Sul pensando naquilo que está no subterrâneo, nas margens. Também, refletir sobre insegurança financeira, fragilidades sociais e habitacionais. Na obra, a diretora ataca em uma falência que, ao contrário das promessas entregues pelo neoliberalismo, não vem do indivíduo, mas da estrutura. 

Ela nos pergunta: do que você precisa para viver? Qual é esse mínimo denominador comum que garante nossa subsistência? Para Miso, três coisas bastam. Cigarros, uísque e tempo com o namorado. Ela trabalha como diarista/doméstica nas casas de jovens que, ao contrário dela, não fracassaram dentro da lógica monetária. Os pagamentos feitos, seja pelos serviços prestados pela Miso, como quando ela compra algo, são supervalorizados pela força do efeito panning, movimento de câmera adotado pontualmente durante estas transações.

Seus ganhos mal dão para pagar o aluguel do apartamento onde mora. Um espaço semelhante a um contêiner, impessoal, sem janelas, aquecimento ou móveis. Sem poder contar com suporte da família (seus pais estão mortos), e do namorado, um cartunista fracassado que vive em um dormitório, Miso percebe, depois de fazer alguns cálculos, que só pode continuar fumando e bebendo uísque se parar de pagar aluguel. 

Tomada essa decisão, a personagem, agora sem-teto, passa a vagar pelas ruas de Seul, uma das cidades mais caras do mundo. Sua rota, geográfica e emocional, é definida pelo reencontro com cinco amigos da faculdade e ex-membros da mesma banda. Eles a hospedam e o tempo de permanência é definido por códigos da convivência diária, ora verbalizados e explícitos, ora reticentes e subliminares.

É através do preparo cuidadoso de refeições e da limpeza que Miso retribui sua estadia. É, de fato, os únicos e valiosos  ativos que tem a oferecer: seu tempo, cuidado e afeto. Seu senso de identidade, sua noção de si mesma, é assombrosa e não compreendida pelos que a cercam. Indivíduos presos a um futuro imaginado, e um tanto utópico, a falsos ideais onde as relações humanas têm papel coadjuvante. Sua postura diante da vida e suas prioridades são confrontadas por aqueles que estão presos a um estado voluntário de vigilância mantenedora do sistema. Por quem normaliza a venda do corpo, não só enquanto força de trabalho, mas até sua última gota (de sangue, em troca de ingressos de cinema).

Esse adiamento da vida, em prol do conforto e estabilidade almejados, se choca com a realidade que se impõe repleta de crises, dívidas, empregos abusivos, cidades inabitáveis. Microhabitat é o casulo, é o retorno para a proteção e calor do útero, a certeza de estarmos sozinhos. Numa barraca, no meio de lugar algum.

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