Uma blasfêmia. Assim Ana Carolina definiu Das Tripas Coração (1982). Religião, culpa, desejo. Acompanhados de repressão, é claro. Para além dos ruídos histriônicos, experimenta-se um mergulho no imaginário masculino acerca do desejo feminino. Portanto, presume-se histérico e perverso.
A intempestiva Betinha (Cristina Pereira), de Mar de Rosas (1977), cresce e desmembra-se em Renata (Dina Sfat) e Miriam (Xuxa Lopes). Um duplo que abraça, a um só tempo, idealização e pragmatismo (“eu me defendo há anos da sua profundidade assassina”). Quais os limites no ato de se encontrar no outro? Qual das duas não existe? Eterno confronto entre a cabeça e os tabus (“meu desejo não me faz mulher, me humilha”). Um verdadeiro campo de batalha, uma disputa de autoafirmação em que ganha aquela que tem a coragem de render-se ao “impulso mais mortal”.
Embora assuma um verniz psicanalítico e metafórico, o enunciado de Das Tripas Coração é simples e direto: o interventor Guido (Antônio Fagundes) vai a um colégio interno para moças comunicar que o estabelecimento será fechado. Enquanto aguarda o início da reunião com as diretoras da instituição, acaba cochilando e suas fantasias mais lascivas vêm à tona.
Ao entrar em cena, ele discursa com firmeza e entusiasmo sobre os planos futuros para o local: a construção de um enorme prédio. Afinado à promessa desenvolvimentista de um “Brasil grande” propagandeado e vendido pelo regime militar. Marchar, marchar, marchar. Sempre em frente. Canções ufanistas, hinos escolares que bradam o progresso e obediência se sobrepõem, com frequência, às falas das personagens. O coletivo está acima do indivíduo e seu livre-arbítrio. Mas onde há fumaça, há fogo e resistência: as pianistas se recusam a tocar “já podeis da pátria filho” no evento do colégio.
Em Das Tripas Coração, os diálogos são estruturados com base em monólogos interiores. As conversas acontecem em tom de sermão. Toda a comunicação se dá num registro truncado, alegórico, estridente, mas poético. Afinal, “até Maria, apesar da beleza, carrega o pecado original”. Beleza e pecado, lado a lado.
Ainda que punição e medo — corporificados em cobras, ratos e pássaros — espreitam, em variadas medidas, as personagens do filme, não se pode negar que exista, também, um aceno otimista ao futuro. Às novas gerações, quem sabe mais libertárias como as alunas do internato, que encaram de maneira mais frontal, sem freios, o entretom de sua sexualidade.
Ditados e expressões com duplo sentido ganham a materialidade das imagens. “Às vezes, você não tem o sentimento de que está inteiramente nua?”, “às vezes, eu me sinto inteiramente exposta”, dizem Renata e Miriam, a certa altura, enquanto caminham despidas pelo corredor da escola. A troca de roupas entre as personagens femininas e masculinas, bem como a barba e os penteados, inscrevem-se organicamente em um espectro fluido e ambíguo de gêneros.
Retornamos, por fim, à pergunta que norteia toda a obra da diretora: quem é que manda aqui? A fragilidade da ordem a ser mantida, da boa educação para moças que deve ser conservada. Um piano que despenca pela janela, espatifa no chão e lá se foram todos os estatutos.
Ante a vulcânica criação de Ana Carolina, talvez não seja delirante consentir com o filósofo Erasmo de Roterdã quando afirma que “é justamente pela loucura que as mulheres são mais felizes do que os homens”.